A Transformação Digital do Curso Médico: A Hora Chegou

Publicado por Renato Sabbatini em

O curso de graduação de medicina tem os mesmos seis anos de duração há aproximadamente 800 anos, apesar do gigantesco progresso das ciências da saúde. Evidentemente, para ceder espaço, muitas matérias tiveram que sair, para nunca mais voltar, como Filosofia, Botânica, Zoologia, Ética, Direito, Física, Química, Matemática, e até História da Medicina. Matérias longas e consideradas indispensáveis, como Anatomia e Fisiologia, sofreram forte redução em suas cargas didáticas, para permitir o ensino de matérias cada vez mais importantes, como biologia celular e molecular, etc.

No entanto, mesmo com essa limitação inerente, a maioria dos cursos médicos já tem mais de 10.000 horas de ensino, o que significa que os médicos estão se formando com um conhecimento cada vez mais superficial.  E o pior, estima-se que cerca de 50% dessas informações (principalmente sobre novas terapias) está obsoleta após três a quatro anos depois que o médico se forma.

Como resolver esse dilema? A única solução será o uso intenso das tecnologias de informação.  Foi pensando nisso que a Associação Americana de Escolas de Medicina (AAMC) se posicionou, há cerca de 30 anos, em um famoso documento intitulado “O Médico do Século XXI”.  Profético e influente, ele recomendou que as Faculdades de Medicina deveriam assumir a vanguarda no uso de tecnologias de informação em todo o curso médico, e de se preocupar em treinar professores e alunos na operação de computadores, redes e seus recursos, com a finalidade de melhorar o acesso à informação disponível de forma eletrônica (que, curiosamente, ainda era relativamente pequena à época do relatório, mas que hoje assume formas e volume avassaladores).

Os quatro pilares do novo ensino médico mediado por tecnologia são:

  1. Suporte online ao ensino e aprendizado para todas as disciplinas
  2. Digitalização dos meios de ensino e materiais de ensino, estudo e referência
  3. Acesso irrestrito a redes internas, internet e computadores e tabletes para todos, discentes e docentes.
  4. Treinamento contínuo para todos no uso das novas tecnologias

Algumas mudanças significativas na legislação educacional a partir da Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDBE) nacional permitiram que muitas disciplinas, e até 40% da carga horária didática presencial, sejam dadas com base em tecnologias à distância. Isso introduz muitos novos benefícios para o acadêmico de medicina, para os professores, e até para a instituição, entre as quais a flexibilização dos programas curriculares, abrindo espaço para mais matérias opcionais e extracurriculares, a substituição das tradicionais aulas magistrais (que pouco contribuem para fixação do aprendizado), e um maior aproveitamento no uso de metodologias ativas de aprendizado, como o já consagrado PBL (Problem Based Learning), Flipped Classroom (classe invertida), aprendizado em grupo, uso de simulações e realidade aumentada e virtual, etc.

A transformação digital do curso de medicina é perfeitamente possível, mas precisa ser feita de modo bem planejado e gradual, de modo a atingir plenamente os quatro pilares acima. Caso essas pessoas não existam na escola, será necessário recorrer a especialistas que detenham o necessário “know-how” para desenvolver, implantar e treinar docentes e discentes nos vários recursos mediados por tecnologia.

Entre as diversas ideias que podem compor esse portfólio de inovações e transformações digitais, temos:

Laboratório de Ensino por Imagens Digitais

Montagem de uma sala especial com computadores ou tabletes conectados por WiFi, e uma mesa do professor com vários recursos de captura e exibição interativa de imagens, como microscópio e lupa digital, negatoscópio eletrônico, computador, quadro branco eletrônico, etc. Para ensino interativo de anatomia, histologia, citologia, citogenética, videoendoscopia e cirurgia, patologia, radiologia, etc. Alunos participam através de sistema de resposta em tempo real.  Um software controla todos os computadores ou tabletes usados pelos alunos e permite enviar aos mesmos as imagens diretamente para exibição e interação em tempo real, disponibilização de exercícios e gincanas de imagens, etc.

Sala de Aulas Interativa

Equipar as salas de aulas existentes com hardware e software que a tornem mais interativas, interiormente e com o exterior: telepúlpito digital, com teclados wireless interativos, rede WiFi, videoconferência, câmara de documentos (epidiascópio e negatoscópio eletrônico), câmara de vídeo robótica para captura de aulas, quadro branco eletrônico, tecladinhos interativos, etc. Podemos também montar salas de aulas no padrão MIT/TEAL – Aprendizado Ativo Aumenta por Tecnologia e no padrão de arenas circulares. Para a captura automática de aulas, dispomos de uma solução de software de gestão centralizada, captura e disponibilização de aulas gravadas em tempo real.

Estúdios de Vídeo a Áudio

Montagem de miniestúdios de gravação e/ou transmissão de aulas em vídeo ou áudio via IP, incluindo todo o projeto de seleção e instalação de equipamentos, implantação de rotinas de uso, etc., e a implantação de interatividade em tempo real por diversos meios, tais como a seleção da melhor plataforma de webvideoconferências para transmissão em tempo real, servidores profissionais de vídeos e podcasts na nuvem, software de gerenciamento de acervo de gravação, webrádios, e tecnologias associadas.

Ambiente Virtual de Aprendizado

Selecionar, instalar, configurar, customizar, dar manutenção e suporte de primeiro e segundo níveis, a plataformas on-line de suporte ao ensino presencial e distância (AVA), tais como o Moodle, bem como as plataformas de suporte de serviço de áudio e vídeo digital na nuvem (Internet), webvideostreaming (transmissão em tempo real ou deferido) e webvideoconferência interativa (GoToMeeting, Webex, Adobe Connect Live, Webconf, entre outros).

Capacitação dos Recursos Humanos

É muito importante também constituir na faculdade, escola ou curso um Núcleo de Tecnologia Educacional (NUTED) ou Núcleo de Educação a Distância (NEAD), com sua respectiva governança, plano diretor plurianual, recursos humanos e de infraestrutura.

O planejamento da transformação digital deve ser feito, preferencialmente, em conjunto com as câmaras de graduação, pós-graduação e residência, de modo a identificar os cursos e disciplinas que podem ser apoiadas por recursos de tecnologia, e deve-se também fazer um levantamento dos recursos necessários para serem adquiridos, com o necessário orçamento para aquisição, instalação e orçamento.

Vimos acima que talvez o pilar mais importante dos quatro seja o de mudar as pessoas que vão participar do programa, ministrando muitos cursos de treinamento e capacitação internos para o corpo docente, corpo discente e secretaria acadêmica, tais como:

  • Como planejar e desenvolver a educação baseada em tecnologia e a distância;
  • Treinamento na gravação e transmissão de vídeo-aulas;
  • Utilização básica e avançada de plataformas on-line de apoio ao ensino e aprendizado (AVA: Ambiente Virtual de Aprendizado);
  • Operação de estúdios de áudio e vídeo

Na nossa experiência, o projeto deve sempre começar com um forte envolvimento e motivação das estruturas diretivas e colegiados internos, e depois do corpo docente com um todo, através de palestras de conscientização.

Em suma, o Brasil hoje é o país com o maior número de faculdades de medicina do mundo, à frente de países com várias vezes a nossa população, como os BRICS (Índia, China e Rússia). Em 2019 já eram 320 faculdades de medicina espalhadas por todo o território nacional, muitas das quais lutam com dificuldades para recrutar um corpo docente de qualidade e dar o suporte de informação necessário para dinamizar a educação e o aprendizado. As tecnologias modernas de informação e comunicação, e um projeto bem desenvolvido, plurianual, de transformação digital, estão no cerne desse esforço, e devem ser adotados e valorizados.


Renato Sabbatini

Fundador, Consultor-Chefe. Neurocientista, professor da Unicamp e da USP. Pioneiro em informática em saúde e no desenvolvimento e uso de tecnologias digitais na educação desde 1979, especialmente na educação médica a distância, trabalhou com várias universidades e faculdades e ajudou a implementar projetos de grande porte. Sua paixão é usar o conhecimento avançado para transformar o futuro da educação através da tecnologia.

3 comentários

Amaury do Lago Prieto · 28 de abril de 2020 às 16:25

Não haverá possibilidade de manter-se atualizado sem o aprendizado das noções básicas de educação à distância. É caminho sem volta!

Pedro L. Dragone · 23 de maio de 2020 às 12:19

Vou mais além Amaury! Com essa avalanche de informações médicas publicadas diariamente, fica impossível nos atualizarmos sem utilizarmos as ferramentas que a informática tem nos proporcionado!

Renato Sabbatini · 12 de dezembro de 2021 às 16:42

Obrigado pelos comentários, Amaury e Pedro! Esse artigo foi escrito bem antes da pandemia, que mudou tudo! Hoje em dia a maioria dos cursos de atualização médica, como os que eu e o Pedro participamos como docentes na ANAMT, são a distância.

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